Preparando a entrada na China |
Lago no deserto de Gobi |
Revista Macau de Novembro 1990 |
A JANELA DE TIAN AN MEN
Quando cheguei a Macau, em 09.09.88, nunca pensei que 2 anos depois estaria a fazer uma viagem de regresso a Portugal … por via terrestre !
Mas assim aconteceu e o que mais gozo me deu, foi o facto de não pertencer ( ou ser herdeiro) a nenhuma “família”, não ter “padrinhos” e concretizar o projecto, sendo um cidadão comum, “vulgar de líneo” e até aí, não especialista em coisas do todo-terreno. O mito do Dakar, que anunciava estas aventuras apenas para gente batida, experiente, ou super-homens.
A minha entrada em Macau, coincidiu com a minha estadia inicial, na colina de Ha Kuai San (colina dos diabos negros) eu, que então fiquei a saber que não passava de um kwai Lo (diabo branco) ! Designações que os chineses dão aos homens pretos e aos homens brancos.
E a colina era conhecida pela colina dos diabos negros porquê !?
Porque as tropas coloniais portuguesas que aí estacionaram, eram as companhias de cipaios, oriundas de Moçambique. Mais tarde o antigo quartel foi transformado na Pousada de Mong-Há. Hoje escola de formação hoteleira.
Talvez também por isso a comunidade emigrante chinesa, em Moçambique, fosse tão significativa e maioritariamente oriunda de Macau.
E aqui recordo desde já, o meu amigo e companheiro de viagem, Mário Sin, filho de Macau e ex-emigrante em Moçambique.
Foi também aqui que o segundo projecto de ligação terrestre Macau-Lisboa, teve a sua génese e início.
O meu vizinho de baixo, nos quartos da Pousada (ocupados quase exclusivamente por funcionários recrutados à República ou visitas oficiais) era o meu ainda maior amigo, Joaquim Augusto Correia.
Estava nessa altura também hospedado por lá, o actor Rui de carvalho e a mulher, convidados pelo então Governador Carlos Melancia. Os dois eram um casal delicioso no convívio e muito acarinhados pelo governador e toda a comunidade portuguesa.
O projecto cresceu e foi tornando-se realidade, mês após mês e quando deixámos a Pousada, cerca de 6 meses depois, podemos dizer que já “rodava”, rumo a Lisboa.
Tinhamos proposto ao governo do território garantir metade do orçamento para a viagem, a partir de entidades privadas. Quando em Junho de 89, ocorre o levantamento de Tian Han Men, já tínhamos garantido 50 % do budget, através dos apoios da Fundação Oriente, da STDM e da CAM (aeroporto).
A RPChina, fecha-se ao mundo e tudo se complicou. Mas a visão do engº. Melancia era clara e chegava bem longe ! E aí ele viu n projecto da ligação Macau-Lisboa, uma janela para entrar na China e quebrar o isolamento a que o império do meio, se obrigou, face ao resto do mundo.
Entretanto a “Glasnost”, crescia e evoluía rapidamente em Moscovo e desta forma o nosso projecto acelerou, tornando também possível a abertura da tal “janela”.
O que aconteceu, foi que 2 anos depois do sonho ter surgido, embora não sem variadas vicissitudes, o II raide Macau-Lisboa, estava na estrada, tendo a equipa composta por 10 homens, atravessado as Portas do Cerco, a 27 de Julho de 1990.
O percurso quis recriar e seguir, a Rota da Seda, mas em 3 jipes Pajero, cumprindo os 23.500 Km efectuados, em 50 dias. Este período espacio-temporal deu título ao documentário produzido pela TDM e reproduzido posteriormente na RTP – “50 dias na estrada” .
Assim saídos de Macau e entrados em Zuhai, fomos para Cantão, subindo até Pequim. Aí estacionados por poucos dias, cumprimos uma agenda oficial e compromissos institucionais para com as autoridades chinesas.
Deixamos a capital chinesa em direcção à antiga capital imperial – XIAN – e a partir daí entrámos no grande deserto do Gobi, porta da rota da Seda.
Passada Turphan ( a maior depressão asiática) e todo um mar de fabulosas dunas, atingimos Urumchi, capital uigur, onde misturado com mandarim se fala russo !?!, em todo o lado. Isto antes da paragem na fronteira da Paz, que separa a RPC, da então ainda URSS.
Esta designação advém do facto de algumas dezenas de anos antes, terem ocorrido grandes e graves confrontos fronteiriços, entre os dois regimes , que causaram milhares de mortes e baixas militares , entre os 2 exércitos comunistas e habitantes fronteiriços. Para selar o cessar fogo passaram a chamar e essa fronteira – a da Paz.
Ultrapassada a fronteira sino-soviética, dirigimo-nos a Almata, hoje capital do Kasaquistão, e percorremos todas as antigas repúblicas asiáticas soviéticas, actualmente países independentes e soberanos, mas que então, alguns já viviam processos revolucionários e independentistas. O Nagorno-Karabá, estava já a ferro e fogo, e os percursos foram cumpridos, no meio de situações de recolher obrigatório.
Estávamos então a cumprir o segundo grande deserto da Rota da Seda, - o do Turkemenistão.
Impossível não recordar as cidades míticas e mágicas de Ashrabad, Tashkent, Samarcanda (antiga capital do mundo islâmico) e Bukará, cidades santas do Islão.
Claro que em Samarcanda, nos sentimos “Corto Maltese” e revisitámos a nossa infância/adolescência, que vivêramos inicialmente nos álbuns de banda desenhada.
Chegados á beira do mar Cáspio, entrámos no ferry que o atravessou, saindo de Baku, novamente numa situação de recolher obrigatório, que se manteve enquanto subíamos pela Arménia, devido aos actos de insurreição que iam surgindo amiúde.
Ainda assim o poder e controlo soviéticos funcionava apesar … e nada de complicado ou grave, nos aconteceu durante os percursos escolhidos e adoptados.
Tiblissi, capital da Geórgia, revelou-se-nos numa bela manhã, pelas 6 h, após mais de 24 h de condução ininterrupta e dura, por estradas e trilhos difíceis.
Iniciámos então a subida do Caucaso, tendo efectuado uma paragem na zona de Rostov, para almoçar em família, na casa dos tios do Igor, o “nosso”falante de português, e que cumprira o seu serviço militar em Angola !?
Não demorámos muito mais, até chegar a Moscovo, efectuando ainda assim sentida e significativa homenagem, no local onde se travou uma das maiores batalhas da II Guerra , contra o nazi-fascismo ( como só eles dizem !), e onde perderam a vida 2 milhões e meio de russos !! Estes holocaustos são para nós impensáveis; - mas existiram e durante toda a travessia da Russia e antiga URSS, esteve sempre bem presente o fantasma do nazismo e da ocupação alemã de 40, extensiva também às repúblicas asiáticas ; Azerbeijão, Turkestão, Quirgizia, Kasaquistão.
Chegados a Moscovo, montámos base no reputado Hotel Belgrado, no centro da capital.
Por esta altura já tinha ouvido tantas vezes a mesma frase/pergunta, que nos era dirigida cada vez que parávamos, que nunca mais a esqueci : - “ Ka ka machine ?” , tradução ; – Que marca de carro é esta ?
Tendo de aguardar pelos vistos de entrada dos “nossos” russos (Igor e Serguei) na Europa ocidental, calcorreámos a capital soviética cumprindo mais uma vez, uma grande agenda institucional, mas com muito agrado e surpresa, face às mudanças e acontecimentos, que todos os dias ocorriam em Moscovo. A cidade vivia em permanente taquicardia. Foram dias impares, irrepetíveis e inesquecíveis !
De novo fomos recebidos em família, desta vez em casa do Serguei, para jantar e saudar com vodka purinho.
Depois de algum stress e ansiedade acumulados na espera, deixámos Moscovo em Setembro, já com algum frio, em direcção à Ucrânia.
E, a 300 km de Moscovo, acontece o primeiro grande e grave (felizmente único)incidente de viagem que nos marcou, mas igualmente nos uniu, provando que a equipa funcionou e estava pronta para ultrapassar as adversidades e obstáculos. – Acidente grave ! Uma colisão lateral com um veículo russo na estrada, que destruiu o Moskevitch ligeiro russo e partiu o cubo da direcção esquerdo, do Mitsubishi “Macau”, que eu conduzia e onde se encontravam também, o Mário e os “nossos” dois russos.
Embora sem danos corporais graves – apenas eu tive de ser assistido e suturado no local, pelo Fernando Silva, o médico que integrou a equipa, devido a um pequeno traumatismo craniano – os carros envolvidos, todavia ficaram muito mal tratados e houve que retirar o Pajero, “em braços”, para uma oficina, onde a cooperação luso-soviética, funcionou em pleno e o jipe foi recuperado, com a intervenção decisiva do mecânico de serviço e membro da equipa desde o início do projecto, o António Teixeira. E apesar de algumas limitações (ficámos sem tracção 4x4), chegámos a Lisboa como definido desde princípio.
Alcançada Kiev, aproveitei mais um dia de repouso para recuperar e partimos em direcção á Europa ocidental.
Entrados na Hungria, escalámos Budapeste e aí prestámos homenagem aos Descobrimentos Portugueses, com a presença na exposição alusiva aos mesmos e tutelada pela respectiva Comissão Nacional, que decorria na capital magiar, em colaboração com os serviços da Embaixada Portuguesa.
Com a entrada na Austria, fizemos escala em Viena e rapidamente seguimos para a Suiça, com uma passagem relâmpago pela Alemanha – os atrasos e percalços ocorridos começavam a fazer-se sentir no orçamento e nos timmings de chegada a Lisboa.
Para trás ficava a Suiça, e pernoitámos no Lichenstein. Vaduz foi o nosso aconchego e retempero, depois de algumas noites mal dormidas na Austria, onde nos “abrigámos” no interior dos carros, por falta de marcação do alojamento e disponibilidade do mesmo.
A França foi a seguir e pela primeira vez experimentámos o início das cadeias (e do conceito)low cost, de beira de estrada, com os “Formule 1”, já disponibilizando TV por cabo, que proporcionou um despertar efusivo por parte do nosso operador de camera chinês, o Há Son, alertando para a sintonização no : -“Channel four” ! “Channel four”! Que por esta altura em França, corresponderia ao nosso antigo canal 18, na TVCabo.
A antiga Gália passou de repente e agora em Espanha, só travámos em Madrid, onde tínhamos encontro marcado com embaixador. Cumprida mais uma vez a agenda institucional, nos contactos que fomos mantendo sempre que possível, com as comunidades portuguesas locais, acabamos o périplo madrileno na tasca das tapas perto da Gran Via, que segundo aí nos contaram, é a favorita e a única que o então Presidente da República, Mário Soares, não falha quando visita a capital espanhola.
Arrancámos finalmente em direcção ao nosso objectivo final, e depois de uma noite mal dormida num parque de campismo, nos arredores de Madrid, fomos “abancar”no maravilhoso Hotel de Turismo, da Guarda, depois de passada a fronteira do Caia, já noite cerrada.
Noite bem dormida, excelente pequeno-almoço e últimas filmagens na capital serrana e baluarte fronteiriço. Os primeiros abraços solidários por quem nos reconhecia, e saímos direitos à Mealhada, para almoçar e fazer a vontade aos “nossos”chineses, o Há Son e o Filipe Kuan – que ganhara o direito de integrar a equipa do raide, num concurso efectuado para jovens até 30 anos, residentes e naturais de Macau, que cumpriram várias provas e testes, até alcançarem o primeiro lugar em disputa - porque eles adoram leitão assado, e esta iguaria se assemelhar muito ao leitão que é feito na China.
A1 até Lisboa, muitas buzinadelas e acenos durante o trajecto, mensagens trocadas constantemente entre os nossos carros, via rádio (banda do cidadão) para descomprimir por um lado e para compensar todo o itinerário na China, em que não os pudemos utilizar, por imposição das autoridades locais, desde que estacionámos em Zuhai e até que saímos da província uigur.
Torre de Belém, “aportada” às 18h, do dia 13.09.1990, sem muita gente a aguardar-nos, talvez umas 6/7 dezenas de pessoas, muita família, amigos, equipa de reportagem da RTP, poucos jornalistas – TSF, Capital, Revista Todo-o-Terreno – já a essa hora o que queriam saber de Macau, tinha a ver com faxes e com o Governador Carlos Melancia, que no dia seguinte se demitiria do cargo.
Última missão a cumprir e peça fundamental da nossa agenda institucional ; entregar a mala do correio/CTT de Macau, que simbolicamente havíamos recolhido no dia 10 de Junho, no Jardim Camões, e que desta vez tinha sido transportada via terrestre, contendo uma emissão especial e um carimbo oficial alusivo à viagem – II Raide Macau-Lisboa – Para isso aguardava-nos uma estação postal itinerante dos CTT, com um funcionário desta empresa, que recolheu e carimbou a mala, conforme havia sido acordado no protocolo celebrado no território, formalizando o apoio institucional e financeiro ao projecto, por parte dos CTT e do produto que promovíamos na carroseria dos jipes – EMS/correio rápido. Ainda assim demorámos 100 dias a entregar esta mala de correio, o que atendendo ao que se passou durante a aventura, … não foi mau de todo !
Para a logística deve-se registar que: os carros foram 3 jipes Mitsubishi Pajero Sportwagon, caixa comprida, de série, 2500 cc. Cilindrada, a gasolina e integraram um conjunto de 300 carros iguais, que estavam retidos em Hong-Kong, na sequência dos acontecimentos de Tian Há Men, tendo sido adquiridos pelo projecto a preço de saldo, sabendo nós que os remanescentes acabaram por nunca ser exportados para a China, e terão sido vendidos para a Arábia Saudita. Foram batizados de ; Macau, Taipa e Coloane. O 1º. está ainda hoje comigo, o 2º. foi entregue à então Direcção Geral dos Desportos e o 3º. seguiu para a Fundação Oriente. Os dois últimos terão já sido alienados e um deles terá ido para Angola, ao que se sabe.
Para a história os meus companheiros de viagem foram o : Joaquim Correia, o Mário Sin, o António Teixeira, o Fernando Silva, o Filipe Kuan, o James Jacinto (realizador da TDM), o Há Son, o Igor Lomakine e o Serguei Moiseev (ambos jornalistas na Rádio Moscovo). O Mário, o Teixeira, o Fernando e o James, continuarão a viver em Macau. O Há Son, terá emigrado para os EUA. O Filipe estará a viver em Inglaterra, onde os filhos estudam. E o Igor bem como o Serguei, andarão pelas “estepes” russas, mas já não como jornalistas. Um como assessor numa fundação russo-americana, o outro como empresário em nome individual, mas não ligado a petróleos, nem armamento, ao que sei. Last but not least, o Joaquim anda por cá como eu, e só temos pena que não possamos fazer o percurso de regresso … mesmo que demorasse mais de 50 dias !
AC
Revista Macau de Novembro 1990 |
Revista Aventura 4*4 Moto de Outubro 1990 |
Continua, estás no bom caminho
ResponderEliminarXico
E o Raid II, faz 21 anos no dia 13.09.
ResponderEliminarChegámos à Torre de Belém, pelas 18h, entregámos a mala do correio - CTT de Macau - e ... acordámos no dia seguinte, com a demissão do governador Carlos Melancia.
Cumprimos a missão e o acordado, com todas as entidades privadas e oficiais, envolvidas no projecto. E mais uma vez os portugueses e Portugal, voltaram a estar ( a comunicar, trocar ideias, comer, "teimosar", espalhar adn, dar/receber)onde nenhum outro ocidental havia estado.
Quintuta bora lá almoçar ...
AC
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