quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Homenagem a Giorgio Bettinelli vespista aventureiro falecido em 16 de Setembro de 2008



Bettinelli, Espirito Liberto

Lo spirito libero si alza in volo
E nulla può offuscarne la bellezza
come per l’uccello migratore
si ode forte il grido di gioiao 
della paura nessuna più traccia
ma di oceani e continenti incantevoli visioni
non ci sarà più fame o freddo
per la solitudine o la morte
ma spazio solo per il mondo intero
nuova e e più accogliente dimora



Esta é uma entrevista ficçionada, em que se misturam tempos e espaços nas perguntas e respostas, mas onde quase tudo corresponde à realidade, tendo sido construída após leitura de alguns dos seus livros e outros textos.
" Irão acusar-te de me teres inventado, considerando-se muito argutos pela descoberta, mas não será verdade que cada biógrafo inventa o seu biografado, e que andamos todos nós a inventar-nos uns aos outros?" …"Nada desse truque com barbas  dos papeis achados, ou entregues, mas um curioso embuste, apoiado nos teus movimentos da alma, e nos teus ímpetos do coração" avisa Tiago Vieira quando encarrega Mário Cláudio de ser seu biógrafo, Mário Cláudio em "Tiago Vieira - uma biografia", D. Quixote, 2011, pag.ª 650
"A Vespa é especial, tem personalidade própria. Além de ser uma scooter, o que implica maior segurança e protecção que uma mota, inclusive da chuva e vento,  é confortável, fiável e o facto de não andar depressa obriga a uma maior tranquilidade, menos stress, podemos ver as árvores, as nuvens, até meditar. Ao conceito de viajar de mota está inerente um frenesim que a Vespa não carrega, por vezes sinto que faço uma viagem iniciática, como se subisse um rio ou viajasse num lago calmo. Também gosto de comparar com a sensação que se encontra ao fazer mergulho, aprende-se uma paz e tranquilidade, como se de planar se tratasse, que sem dúvida nos ajuda para a vida fora de água...
Viajar assim durante tantos anos, sem ver o fim da viagem, por tantas culturas diferentes, obriga e ensina a ter paciência, a não querer tudo logo, dá-nos armas que ajudam a fugir do consumismo típico dos tempos de hoje".

No dia 16 de Setembro passam 3 anos desde a morte de Giorgio Bettinelli, sem dúvida um dos grandes viajantes do nosso tempo, que passou catorze anos a dar a volta ao mundo em Vespa, primeiro numa PX 200 e mais tarde em GT.

Há  alguns anos, de passagem em trabalho pela Luanda que revia muitos anos depois, estava na Ilha com um amigo e reparei que alguém assobiava  a canção Blackbird dos Beatles. Ao prazer do sol quente africano, das recordações de tempos há muito idos, juntou-se a nostalgia dum som que me tem acompanhado quase toda a vida, como se toda a restinga fosse música.

"Sabes, aquele tipo deu a volta a África de Vespa, tudo pago pela Piaggio! Encontrei-o agora na Teixeira Duarte, parece que tratou de toda a logística em Angola, com o apoio daquela empresa", foi dizendo o meu amigo enquanto lhe lançava um aceno.

Voltei a vê-lo à noite, no restaurante Restinga, copo de marufo na mão (mais tarde explicou-me que tinha por hábito em cada país por onde passava experimentar uma bebida local, cachaça no Brasil, rum na Jamaica, Vodka na Rússia, chibuki no Zimbabwe, Pastis na França, coleccionando sabores).

Já tinha ouvido falar desse Giorgio Bettinelli, sabia que tinha relatado em livro algumas das suas viagens na Ásia, sempre de Vespa. Contou que estava de novo em Luanda para acertar algumas dúvidas, agora que andava a escrever sobre a volta a África.

No fim da noite, cansados de rebitas e outras danças, espantei-me ao ver que se afastava numa velha Casal Boss azul, vestígios de uma presença já bem longínqua. " É bem portuguesa e gira" lançou no seu português de rua, uma das seis línguas assim aprendidas (inglês, indonésio, espanhol, russo e francês), a que se soma o seu italiano natal.

No dia seguinte, na esplanada do cinema Miramar, conversámos mais longamente. Bettinelli facilmente inspirava simpatia, talvez pela fragilidade física que aparentava e que encaixava num ar um pouco lunático, quem sabe se pela ligeireza e simplicidade com que relatava as suas aventuras.

Explicou-me que desde miúdo sentia essa constante vontade em partir, e daí ter passado a adolescência e juventude viajando à boleia, numa errância que não o impediu de fazer teatro e música e de se licenciar em Literatura pela Universidade de Roma. A partir de certa altura sentiu que já não lhe bastava o ser viajante, queria mais do que "apenas ver as pessoas e a paisagem passarem pela janela dum combóio", desejava tocar-lhes, senti-las, penetrar nelas, daí ter vivido um ano em Moçambique colaborando com a FAO, outro ano na India "divagando no limiar de zonas perigosamente aditivas", mais dois anos na Indonésia, onde recebeu como paga de dívidas uma Vespa e descobriu a companhia que lhe faltava. " Então a minha vida mudou, não gozem, conduzi vários modelos, a desta volta a África recebi-a nova aqui em Luanda em Julho de 1999, após dias complicados no Congo em que escapei com vida por pouco mas a Santa Maria não, a primeira era a Nina, outra foi a Pinta, esta de Angola foi a primeira sem nome, mas nunca fui a apanhado em intimidades com nenhuma…".

Depois deste encontro perdi-lhe o rasto, sei que escreveu mais dois livros e que faleceu em 2008 na sua casa debruçada sobre o rio Mekong, preso aos encantos orientais de Ya Pei, que conhecera em Kathmandu, ficando então com companhia e companheira.

A sua obra, toda escrita em italiano, não está traduzida em qualquer língua, mas sem grande dificuldade percebi serem belos guias de viagem, ligando o dia a dia com rigorosos elementos históricos, sociais e políticos. Sem dúvida o maior aventureiro em cima de uma Vespa, catorze anos atravessando cinco continentes sem nada saber de mecânica, Bettinelli vai desenrolando o que lhe acontece, nunca duma forma monótona, há sempre alguma coisa a contar, existem sempre histórias ou memórias para colorir o enredo. Aldeias, cidades e países sucedem-se vertiginosamente, por vezes em catadupa, até os continentes se aproximam, mas raramente viajamos por páginas desinteressantes ou repetitivas, sem duvida companheiros ideais dos Lonely Planet que Bettinelli não dispensava.

Para além da volta a África onde quase perdeu a vida entre rebeldes no Congo, atravessou a gelada Sibéria, pisou o lago Baikal, chegou à Tasmania. Atravessou toda a América do Norte e a Patagónia, assentou na China até partir para a imortalidade de que fala Borges: lá bem no fundo todos nos consideramos imortais, como se animais fossemos que assim se consideram por não ter consciência dessa inevitabilidade, ou não teríamos força para qualquer risco, temendo cada viagem poder ser a última.

Mas atenção, a Vespa é um elemento discreto nestas histórias, apenas existem referências pontuais e curtas, embora bem significativas para quem conhece os prazeres que proporciona. Muita mais que vespista ele era um artista que se transportava de Vespa, sendo os seus livros atractivos e úteis para qualquer turista ou viajante, numa narrativa pessoal e mesmo introspectiva. Vai descrevendo o que lhe vai acontecendo, encontros de viagem, músicas que vai ouvindo, espectáculos de rua a que assiste, memórias que vão chegando, narrando de forma cómica ou irónica, zangada ou triste.

O seu último livro conta aventuras chinesas, onde encontrou a serenidade só possível após ter gradualmente soltado na estrada a inquietude que o dominava, possibilitando-lhe um estado emocional que conduziu ao amor que partilhou com Ya Pei.

"Nas últimas viagens já sentia falta de alguma coisa, desejava partilhar o que me acontecia com alguém que estivesse em sintonia comigo", escreveu algures.

Admirador de Brecht e Dostoyevski, sempre sublinhou a sua opção política de esquerda, tendo escrito diversas crónicas para o Jornal do PCI "LÙnita" , tendo a maior parte da sua obra sido publicada pela Feltrinelli, Editora do PCI.

Chegou a ter uma banda, Pandemonium, e gravado um disco. Juntamente com Lucio Fabri, violinista seu conterrâneo de Crema, estava a preparar novo disco quando partiu para a mais triste das suas viagens. Seriam canções nascidas durante os catorze anos de aventura, quais petiscos crioulos, caldos de cultura, como se a Vespa fosse caravela, a imaginação porão do navio e a viola tacho de sabores, a que chamou Dovunque sia (estejas onde estiveres). Na tua ultima viagem, iniciada enquanto dormias, que sons estarás a ouvir? 

Apresento a lista de todos os livros publicados, relembrando que com edição apenas em língua italiana, não existindo qualquer tradução noutra língua, nem mesmo em inglês. Para além do interesse geral da obra, a sua ligação à presença portuguesa em outros países - veja-se o que relata de Macau e principalmente de Moçambique e mesmo Angola - penso que merecia edição em língua portuguesa. Quase todos estão disponíveis através da internet, alguns com download gratuito em books.google.com/


La Cina in Vespa
Publicado em 2008 pela Feltrinelli, 348 páginas
Atravessa todas as províncias e regiões especiais chinesas, incluindo Macau e o Tibet

Rhapsody in black. In vespa dall'Angola allo Yemen
Publicado em 2005 pela Feltrinelli, 331 páginas
Tudo começa em Angola, passa por Moçambique…

Brum Brum: 254.000 chilometri in Vespa
Publicado em 2004 pela Feltrinelli (1.º edição em 2002), 393 páginas
A tal viagem que acaba abruptamente no Congo

In Vespa. Da Roma a Saigon
Publicado em 1997 pela Feltrinelli, 300 páginas
Narra a sua primeira viagem

In Vespa oltre l´orizzonte
Publicado em 1997 pela Rusconi Libri, 256 páginas
400 fotos sobre a primeira viagem

De que forma é que utilizar uma vespa caracteriza de forma especial uma viagem? Tanto faz ser vespa como qualquer mota?

A Vespa é especial, tem personalidade própria. Além de ser uma scooter, o que implica maior segurança e protecção que uma mota, inclusive da chuva e vento,  é confortável, fiável e o facto de não andar depressa obriga a uma maior tranquilidade, menos stress, podemos ver as árvores, as nuvens, até meditar. Ao conceito de viajar de mota está inerente um frenesim que a Vespa não carrega, por vezes sinto que faço uma viagem iniciativa, como se subisse um rio ou viajasse num lago calmo. Também gosto de comparar com a sensação que se encontra ao fazer mergulho, aprende-se uma paz e tranquilidade, como se de planar se tratasse, que sem dúvida nos ajuda para a vida fora de água...

Viajar assim durante tantos anos, sem ver o fim da viagem, por tantas culturas diferentes, obriga e ensina a ter paciência, a não querer tudo logo, dá-nos armas que ajudam a fugir do consumismo típico dos tempos de hoje.

Porque viajas sozinho? E dizes que quando acaba uma viagem estás logo a pensar noutra, não significará isso instabilidade, dificuldade de socialização, andar à procura de alguma coisa que não sabe o que é? Consideras-te "bicho do mato"?
Sabes, há várias formas de viajar e na minha vida já passei por todas elas, mas apenas sozinho encontramos o nosso ritmo, estaremos mais abertos para absorver e conseguir uma integração, dentro do possível, com os sítios por onde vamos passando. Claro que só verdadeiramente se conhece, no sentido exacto do termo, a cultura local quando aí vivemos e trabalhamos, onde não estamos como meros turistas ou mesmo como viajantes. Mas devo dizer-te que nas últimas viagens já tenho sentido vontade de ter alguém ao lado com quem partilhar o que vou sentindo. Nunca me senti só, mas começava a sentir alguma solidão. Sorte das sortes - ou talvez disponibilidade mental para tal - encontrei Ya pei e agora parei um pouco. Tenho prazer no dia a dia, nas idas ao supermercado, desejo ter um filho, chamar-lhe-ei Hermés como meu pai. Mas, não posso mentir, por vezes sinto um bichinho a roer cá dentro que me empurra a partir, mas também confesso que agora só o concebo com Ya Pei, pelo menos se fôr por temporadas longas…

Apostei nesta relação, talvez seja a primeira vez que verdadeiramente o faço, não sei se esta entrega tem futuro. Lembro-me que quando estava em Macau falei pelo tel. com Ya Pei e a sombra da separação, das vidas diferentes - ela tem responsabilidades que a impedem de acompanhar esta minha vida errante - e falo disso no meu livro sobre a China. 

De que forma é que ser comunista influencia a forma como viajas? Resposta: muita importância às pessoas, à forma como vivem, viajo no país real, interesso-me pela situação política no pais, ajudo quem precisa (?), ver de " o que é ser comunista"



Sempre fui e continuo a ser de esquerda. Muito pouco mudou no mundo, continua ser um sitio injusto e que podia estar muito melhor. Há quem se aliene ou mude de cor política por desilusão, justificando-se com a má formação da natureza humana, mas se assim funcionássemos na Grécia não teria surgido a democracia, não teria existido a revolução francesa nem experiências apaixonastes - embora com muitos erros - como a revolução russa ou a vossa em 1974. A história da humanidade marchará independentemente de vira casacas, é algo inevitável, dialéctico. Repito que seria fácil encontrar razões para a desilusão - veja-se muito do que Stalin ou Mao fizeram, pensemos na pobreza em Angola ou Moçambique - mas essas são apenas dolorosas árvores, a floresta está lá à espera! 

No meu país as derrotas da esquerda - como sabemos muito causadas pelas intrigas dos EUA relacionadas com a morte de Aldo Moro e a consequente dissolução do PCI em 1991, a que acresceu a queda dos países socialistas - têm servido para afastamentos ideológicos que me chocam! Em França, Espanha e com certeza em Portugal passou-se o mesmo. Por várias razões, não são intelectuais como Prezzolini que me atraiem.
Agora há aqui uma questão que eu quero sublinhar: este meu discurso, esta minha visão marxista, é verdade que encontra resposta nalgum tipo de revolução, onde a justiça social, económica, cultural, passa a imperar. Mas não tenho ilusões, este é um discurso de quem está de fora, existe uma mera opção ideológica intelectual, a verdadeira alteração só pode partir de quem sente na pele os desequilíbrios económicos característicos duma sociedade capitalista.

Todavia eu não sou o viajante rebelde, pertenço mais aos românticos, um pouco naif, pelo prazer de sentir o vento na pele. Lembras-te do poema Itaka de Kavafi? Mas sou atento ao que me rodeia e tento mostrá-lo nos meus livros. É impossível ficar alheado a problemas tão graves como a falta de água em África, onde as populações, de lata à cabeça, percorrem quilómetros para encontrar um pouco desse bem essencial! Podemos tentar ajudar, criar campanhas que resolvam problemas pontuais, mas temos de ver mais longe, pensar nas razões para essas calamidades, e vamos sempre ter a questões políticas que passam pela injusta distribuição das riquezas. Podemos ficar pela tal ajuda romântica, assim limpamos a consciência, mas o verdadeiro problema mantém-se, já Marx o dizia há muito!

Mas não nego que a procura de Ítaca me atrai…trago sempre estes versos comigo

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito. tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.
Constantino Kabvafis (1863-1933)
in: O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.

Como começou esta tua vida em Vespa?
Como disse, sempre me senti de partida,quase de uma forma patológica, assentando aqui ou ali. Quando vivi em Moçambique a perda de um amor - Josina, militante da Frelimo, assim chamada em honra à Josina de Machel - empurrou-me para longe e quando dei por mim estava na Indonésia! Por mero acaso recebi uma Vespa como pagamento de dividas e, depois de me sentir muito bem a caminho de Sumatra para ganhar prática na condução - nunca tinha guiado mota - pensei porque não dar a volta à Ásia, Continente que sempre me atraiu? Juntando algumas notas de viagem e chamando a minha modesta veia de escritor - já havia publicado uma ou outra coisa - surgiu o meu primeiro livro "In Vespa - de Roma a Saigão". E sempre achei que uma scooter ia bem comigo, eu sou lingrinhas, fraca figura, este pequeno veículo não é arrogante como um jeep, talvez por isso sou bem recebido em todo o lado. Viajo para viver e a minha curiosidade faz-me tirar notas que possibilitam que no fim de cada viagem surja um livro.

Passaste por várias antigas colónias portuguesas, chegaste mesmo a viver em 1982 em Moçambique…

E a apaixonar-me pela tal Josina, que voltei a encontrar em 1999. Bem sei que as condicionantes históricas e políticas determinaram evoluções diferentes, mas senti-me muito mais confortável em Moçambique que em Angola…e dispenso piadas brejeiras…onde grassava a corrupção, apesar de Luanda ser uma cidade maravilhosa. Em 1999 vivia-se a terceira fase da guerra civil e apenas com o desaparecimento de Savimbi, em 2002, foi possível começar a construir bases sólidas de algum progresso. Os meus amigos angolanos têm muita esperança e confiança no futuro. Também passei por Timor e feriu-me a repressão Indonesia que então existia.

O historiador René Pélissier, especialista na moderna colonização portuguesa, que te inclui na lista dos grandes exploradores, considera que o teu testemunho não é a visão de um missionário, nem a de um turista, mas de um testemunho útil para a compreensão da situação social nesses países. Sentes alguma ligação especial à cultura portuguesa, depois de teres contactado com tão diversas presenças culturais, quer na perspectiva de colonizador quer de colonizado? Basta pensarmos em África e Ásia, onde muitos dos países por onde passou foram colónias francesas, holandesas, belgas e até inglesas, países que também conheces, sem falarmos na superpotência EUA...

É verdade que com a presença portuguesa - embora apenas na sua forma amestrada pois nunca estive em Portugal nem, diga-se, em Espanha- tive afectividades especiais, mas confesso que não encontrei grandes diferenças com outras regiões ocupadas por potências coloniais diferentes. As pessoas são iguais em todo o lado, embora os portugueses talvez se misturassem mais com os autóctones, surgindo assim caldos culturais, abraços entre culturas que outros colonizadores evitaram. Veja-se o caso dos macaenses, mistura entres portugueses e chineses que existe em Macau, que por exemplo não se encontra em Hong Kong, pela menos duma forma tão pura, sem qualquer das partes perder a sua identidade cultural. Apenas passei um dia em Macau mas confesso que me senti muito mais em casa que em Hong Kong…hei-de voltar!

Qual a viagem que te deu mais prazer ?
Resposta complicada, cada uma foi feita  numa determinada altura da minha vida e sempre foi meu lema aproveitar ao máximo o que me acontece no momento. Isto não quer dizer que não leve em conta com o futuro, que só veja a árvore, mas sim que se torna difícil fazer comparações, olhando para trás. Mas sem dúvida que na volta à China foi onde mais pude aprofundar o que me ia acontecendo, talvez a um nível diferente da "mera" colecção de lugares e países das minhas viagens anteriores. Acresce que já vivia na China há dois anos e meio e que portanto tinha aproximações que nas outras viagens eram muito mais superficiais. Foram 39.000 km em 18 meses num país grandioso, explorando minúsculas aldeias e cidades imensas, caminhos miseráveis e modernissimas auto-estradas, desertos coloridos e brilhantes centros comerciais. Ao escrever "A China de Vespa" ( o nome parece descender do jornal de Macau "A Abelha da China" de finais do sec. XIX…) senti-me mais seguro que nos outros livros, não  apenas por já em certa medida compreender as contradições da evolução chinesa mas talvez também por já ter absorvido um pouco da aceitação budista, o que tornou mais fácil comentar com respeito sem abdicar dos meus princípios, encontrando algum equilíbrio entre, p.ex., o salto fantástico no atraso chinês que Mao Tse Tung  proporcionou  e os exageros e injustiça que provocou. Trata-se de um livro muito pessoal, introspectivo, onde grande parte relata a minha adaptação ao que me ia acontecendo na China 


Referiste a importância e a diferença do projecto China. Como nasceu?
Conheci YaPei no Nepal, quando viajava da Terra do Fogo à Tasmania, e em 2003 casámos em Montana, onde comecei a trabalhar no Rhapsody in Black. Poucos meses depois o meu pai faleceu e eu tive outra vez de partir, agora mais do que nunca para fugir da vida…às vezes penso nisso! Se estivesse sozinho escolheria algum sitio no mundo, apontando à sorte no mapa, mas tinha Ya Pei e partimos para Taiwan, sua cidade natal. Quatro meses depois a minha dor mantinha-se mas encontrara um desprendimento, um misto de compreensão e quase aceitação, que parecia dar-me algum animo para retomar o livro sobre África.

Ainda me lembro, a nossa cabeça é estranha, era tudo confusão, o amor falhado de Josina misturava-se estupidamente e obsessivamente com a culpa de já sentir o meu pai longe, de sofrer pouco por ele, eu que devia era agarrar-me ao verdadeiro amor que encontrara em Ya Pei!

Foram tempos difíceis, eu que nunca entrara na droga, e na India estive bem perto desse ambiente, cheguei a ver o álcool como anestésico e não como veneno! Discutia com Ya Pei, fazia-lhe a vida um inferno. Agora à distancia penso não ser apenas a morte do meu pai, mas a noção de que a minha vida estava a levar uma volta, estava com medo do amor me levar a parar com as viagens, que impedisse esse espírito liberto, essa noção ou ilusão de ser completamente dono da minha vida. Tinha de voltar a partir, recomeçar tudo outra vez, o Bali esperava por mim! 

Mas, muitas vezes felizmente, o imprevisto existe e acabei por ver-me nas célebres Chunking Mansion, em Nathan Road, depois de passar pela detention room do aeroporto de Hong Kong, impedido de partir para Indonésia após um gin tónico que me fez perder o controle quando descobri que me faltava o devido visto para a Indonésia.

Ya Pei foi ter comigo e no dia seguinte apanhámos a camioneta para a Main China rumo a Cantão, pais que, confesso, nunca me tinha atraído, tal como o Japão. Mas então algo estranho aconteceu, senti-me em casa, nada percebia da língua, tudo me parecia incompreensível, mas ao mesmo tinha a sensação que sempre havia ali vivido! Pedia pão e vinha algo esquisito recheado de carne, o pequeno almoço era sopa, descobria minorias étnicas por todo o lado, imaginava encontrar um povo uniforme, reservado, frio, dogmático e quase xenófobe, mas ao contrário encontro cordialidade e um optimismo inato e uma tolerância genuína. Subimos o rio Li em Guilin - ao som de marchas revolucionárias - e admirámos os encantos das suas montanhas, no lago Dali, na província de Yunnan, recomecei o livro de África junto aos três Pagodes, e acabámos por comprar uma casa junto ao rio Mekong.

Mas nem podias guiar na China…
Ora aí está, andei por todo o mundo, feito pássaro livre…

Talvez mais insecto…
Sim, humano montado numa vespa, como se de um D. Quixote moderno se tratasse, e acabei por pousar no único país do mundo onde a minha Carta Internacional não tinha validade! Com ajuda de tradutores lá fiz exame de código e condução e mais uma vez com o apoio da Piaggio, que me enviou para Foshan uma bela GrandTurismo verde àgua, avancei para estes 39.000 km percorrendo todas as províncias chinesas, incluindo o Tibet.

Sózinho?

Alone again? Não, tive companhias, Ya Pei fez parte da viagem comigo…além de outros parceiros de que falo no livro… acima de tudo senti-me bem por saber que alguém pensava em mim e tive saudades, o que não acontecia antes da mesma forma. Ter saudades de quem se ama não é como ter saudades dos amigos ou duma cidade…


Dizes-te supersticioso, até que ponto?

Brinco com superstição "à chinesa": mais que ateus, confuncionistas, taoistas ou budistas os chineses são supersticiosos e eu tenho as minhas superstições que me divertem da forma que um ateu o pode fazer. 

Mas, neste campo místico, é impossível não referir o papel que a religião exerce na cultura dos povos, nem sempre da forma mais positiva.

Fazes canções e teatro, escreveste livros e artigos para jornais, onde encontras inspiração para tanto?
Sempre gostei de criar, de arriscar, de há muito que percebi o prazer que tal me dá. Isto de ser aventureiro ou, de uma forma menos romântica ou lírica, esta força que me empurra pelo mundo, com todas as vantagens e desvantagens que isso traz, alimenta-me a vontade em exprimir o que sinto. Não discuto se o que escrevo ou componho tenha ou não valor, sinceramente isso é secundário, mas se alguém achar que vale a pena ouvir ou ler alguma das minhas peças claro que me sentirei contente. 

Repara que as minhas viagens são em grande parte pagas pela Piaggio, fazem parte do acordo que tenho com eles, e diga-se que até nem sou viajante de grandes luxos, a que acresce os direitos que recebo pelas vendas dos livros e artigos.

Viajo para viver e as formas como utilizo o que todos os dias absorvo é uma mera consequência, mas estou certo que assim funcionaria mesmo que não pudesse andar pelo mundo…

Há quem ache as tuas viagens demasiado organizadas…
Estás a referir-te ao Giorgio Càeran ? Não comento, cada um viaja como quer, não perco tempo com essas conversas. A ideia não é competir com ninguém, eu viajo da forma que melhor me possibilita escrever, o prazer está não apenas na viagem!
Mas na tua bagagem levas só o essencial, nem tenda levas… 
Pois é, arranjo sempre onde ficar, albergues baratos há por todo o lado. Apenas no Irão tive de ficar em casas particulares, de famílias que me acolhiam, uma vez que somente em Teerão havia lugares onde ocidentais pudessem dormir. Claro que por vezes aceito pernoitar casa de alguém que se mostre disposto a isso, é uma forma de contactar mais de perto com as pessoas. 
Repara que uma tenda, além de ocupar espaço (prefiro levar uma viola), não se torna prática em locais onde o chão é duro, o que acontece com frequência, para além dos possíveis furtos.

Costumas ouvir música enquanto viajas?

Enquanto guio não, mas quando descanso ou trabalho no computador ouço a vossa Teresa Salgueiro, Cat Steevens, Monteverdi, Beatles, tantos outros, as últimas páginas do livro sobre a China está repleto de agradecimentos a todos eles!



O que pensas fazer a seguir?

Em Setembro de 2008 Ya Pei, esposa de Giorgio, anunciou a sua morte com estas palavras:
Sono triste, desolata ma Giorgio non è più con noi, 
vola libero come un uccello, 
è in viaggio, ma in un altro mondo, 
freddo. 
Giorgio voleva scrivere un libro sul Tibet, 
ma non può più farlo, 
ora ha bisogno di dormire. 
Non so cosa posso fare per continuare il suo sogno, 
alle sue parole e al suo amore verso di noi. 


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When the doors of perception are cleansed, man will see things as they truly are, infinite”

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